Ola!

"A felicidade não passa de um sonho, e a dor é real... Há oitenta anos que o sinto. Quanto a isso, não posso fazer outra coisa senão me resignar, e dizer que as moscas nasceram para serem comidas pelas aranhas e os homens para serem devorados pelo pesar."(Schopenhauer)

terça-feira, 12 de maio de 2015

Em certas noites

Essas noites, onde o povo de casa dorme, mas nas horas em que o sono não cerra com facilidade, e me escorrego pesado até o fundo do prédio; duplex de um andar, que admito sentar para tecer o tempo, só enquanto Hipnos  não chega a me solevar, sinto cortes de vento que me rodeiam ainda à janela, mesmo pelo pouco tocar.
A vistosa sombra que cobre as calçadas recobre as vistas de intentos, a procurar... vidas, seres estes como a mim não dormem, e ipso facto procuro companhia nas coisas como para me agradar. Isentos de tudo, são ruas tristes estas que jazem na noite mediana, e não resisto abrir a porta, que por me levar já vejo horas...
E eu piso o chão numa noite que estranha me percebe, sussurros de solidão, que vejo a metros a se conter, talvez, numa modorra modesta que se interdita, nem sim, nem não, mas exatamente uma cadela que se precipita a me reparar, quase que por si só nesta madrugada eu admito não estar surpreso.
Outras noites a vi se esgueirando noutras casas, outras tantas horas quase inóspitas moradias, de lhe empurrarem ou solaparem para longe, quase nunca a ouvia latir nesses escuros. Que de certo embriagam a quem quer se redimir, de um dia confuso, cansativo e obtuso que a todos soa transparecer.
A cadelinha ainda jovem viu o supor das ruas, ledo abandono. Tantas gentes, poucas almas caridosas. Muito movimentar, mas ainda seres de pedra. E a forma como esta canina me olha leva a crer que quem dera a vida ser mais suave, plena de melhor ser. O ver dela talvez me assimile nos demais, por sermos iguais, bípedes que pensam demais e sofrem idem.
Somos os únicos seres que sofrem consigo. Nunca que eu suporia ver algum animal sofrer de existencialismo. Por isso só a persigo no olhar, como ela já me olhou, tentando compreender o todo, que  é quase nada. Mais uma vez, a vida tem de tudo do qual nunca encontramos. E este animal, por mais limitado no pensar pareça, me serviu para lhe tomar de um minuto que seja.
Ela anda sem sono como a mim, que a sigo por ver. Vai farejar a todos os cantos do mundo, o que melhor lhe convier em tantos; submissão por comida, ou mesmo o catar guarita nos santos que estão à praça. Ao meu ver, espaços onde o frio é mais intenso. E eu em lenço a persigo sentindo o frio intenso desta madrugada. Talvez eu não tivesse o que fazer, mas ao meu ver é nesta noite primeira que lhes noto assim, tão amiúde, ao tempo que também parece grande esta noite.
As corujas tem asas para a noite, buscam igrejas, prédios abertos ao léu, liberdade noturna essa de escolher esgueirar-se, mas a cadela só escolhe frios; na calçada, na murada ou na praça ao céu... É crido que já sonha... Mesmo em meio ao ermo da praça. Fecha os olhos sonolentos que invejo tanto, já não liga por minha persiga, a preocupação de seu sentir frio é superior, e eu tremo de frio também, já imaginando por ela. Vendo que por si só me é desnecessário nesta noite me  proteger fora com esta coberta, olho pra trás, minha casa a espreita e eu em roupa de dormir... Me inquieta estar-me longe da normose do sono nas horas.
Sofro pelo alheio como se fosse sempre o derradeiro sintoma do medo, que não perpassa alem do frio das portas, além do vicio que me ronda de ter meios para as horas. Deixo o lençol enrolado a cadelinha, é bem mais provável sentir falta da hospitalidade daquilo que não temos. Da companhia assaz de momentos, de montes de vastidão e escuros que adianta imensidão. Ela, muito provavelmente acordará sem frio, sem instrumentos de medos que o mundo assim o é.
E eu fui menos eu nessas horas, recolho-me ao que parece ser sono, ao peso dos passos até chegar a minha própria porta, sem mistérios de vacilação, só olho a praça numa constatação de que me noto sob égide mórbida, de quem procura uma constatação pra minha humanidade quase morta de outras horas... A manhã chegará em breve, e serei mais um como aquela que dorme no relento, sozinho a passear.


(Cléber Seagal)

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