Essas
noites, onde o povo de casa dorme, mas nas horas em que o sono não cerra com
facilidade, e me escorrego pesado até o fundo do prédio; duplex de um andar, que
admito sentar para tecer o tempo, só enquanto Hipnos não chega a me solevar, sinto cortes de vento
que me rodeiam ainda à janela, mesmo pelo pouco tocar.
A
vistosa sombra que cobre as calçadas recobre as vistas de intentos, a
procurar... vidas, seres estes como a mim não dormem, e ipso facto procuro
companhia nas coisas como para me agradar. Isentos de tudo, são ruas tristes
estas que jazem na noite mediana, e não resisto abrir a porta, que por me levar
já vejo horas...
E eu
piso o chão numa noite que estranha me percebe, sussurros de solidão, que vejo
a metros a se conter, talvez, numa modorra modesta que se interdita, nem sim,
nem não, mas exatamente uma cadela que se precipita a me reparar, quase que por
si só nesta madrugada eu admito não estar surpreso.
Outras
noites a vi se esgueirando noutras casas, outras tantas horas quase inóspitas moradias,
de lhe empurrarem ou solaparem para longe, quase nunca a ouvia latir nesses
escuros. Que de certo embriagam a quem quer se redimir, de um dia confuso,
cansativo e obtuso que a todos soa transparecer.
A
cadelinha ainda jovem viu o supor das ruas, ledo abandono. Tantas gentes,
poucas almas caridosas. Muito movimentar, mas ainda seres de pedra. E a forma
como esta canina me olha leva a crer que quem dera a vida ser mais suave, plena
de melhor ser. O ver dela talvez me assimile nos demais, por sermos iguais, bípedes
que pensam demais e sofrem idem.
Somos
os únicos seres que sofrem consigo. Nunca que eu suporia ver algum animal
sofrer de existencialismo. Por isso só a persigo no olhar, como ela já me
olhou, tentando compreender o todo, que
é quase nada. Mais uma vez, a vida tem de tudo do qual nunca encontramos.
E este animal, por mais limitado no pensar pareça, me serviu para lhe tomar de
um minuto que seja.
Ela
anda sem sono como a mim, que a sigo por ver. Vai farejar a todos os cantos do
mundo, o que melhor lhe convier em tantos; submissão por comida, ou mesmo o
catar guarita nos santos que estão à praça. Ao meu ver, espaços onde o frio é
mais intenso. E eu em lenço a persigo sentindo o frio intenso desta madrugada.
Talvez eu não tivesse o que fazer, mas ao meu ver é nesta noite primeira que
lhes noto assim, tão amiúde, ao tempo que também parece grande esta noite.
As
corujas tem asas para a noite, buscam igrejas, prédios abertos ao léu,
liberdade noturna essa de escolher esgueirar-se, mas a cadela só escolhe frios;
na calçada, na murada ou na praça ao céu... É crido que já sonha... Mesmo em
meio ao ermo da praça. Fecha os olhos sonolentos que invejo tanto, já não liga
por minha persiga, a preocupação de seu sentir frio é superior, e eu tremo de
frio também, já imaginando por ela. Vendo que por si só me é desnecessário nesta
noite me proteger fora com esta coberta,
olho pra trás, minha casa a espreita e eu em roupa de dormir... Me inquieta
estar-me longe da normose do sono nas horas.
Sofro
pelo alheio como se fosse sempre o derradeiro sintoma do medo, que não perpassa
alem do frio das portas, além do vicio que me ronda de ter meios para as horas.
Deixo o lençol enrolado a cadelinha, é bem mais provável sentir falta da hospitalidade
daquilo que não temos. Da companhia assaz de momentos, de montes de vastidão e
escuros que adianta imensidão. Ela, muito provavelmente acordará sem frio, sem
instrumentos de medos que o mundo assim o é.
E eu
fui menos eu nessas horas, recolho-me ao que parece ser sono, ao peso dos
passos até chegar a minha própria porta, sem mistérios de vacilação, só olho a
praça numa constatação de que me noto sob égide mórbida, de quem procura uma
constatação pra minha humanidade quase morta de outras horas... A manhã chegará
em breve, e serei mais um como aquela que dorme no relento, sozinho a passear.
(Cléber Seagal)